O meu cachorro e o exercício da alteridade
Estamos enredados uns nos outros e a vida só é possível porque é assim; entender as distâncias; um breve comentário sobre Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret
1.
No começo, ele parecia brincar de pular em cama elástica sem a cama elástica. Atingia a altura de pelo menos três vezes o seu tamanho. No final, um tumor ósseo que o fez caminhar como se tivesse esquecido qual era mesmo o motivo que nos fazia ficar de pé todos os dias. Os pelos esbranquiçados emolduravam um olhar que não se dirigia a nada nem a ninguém.
Um olhar que é o de um ser vivo em seus últimos momentos nessa condição, a condição de estar aqui, partilhando conosco o ar, os cheiros, as texturas, os sustos, as coisas que não saem como a gente gostaria, o planeta que abriga a vida dele e a minha e tudo que existe para nós dois.
2.
Eu dei a ele o nome de Mujica, em homenagem ao ex-presidente uruguaio que morreu há pouco e que havia pedido para ser enterrado ao lado do corpo de Manuela, a cadela que envelheceu ao lado dele.
Com apenas alguns dias de distância, os dois Mujicas se tocaram — não na vida, não nesta vida, mas na saída dela.
3.
Tive um cachorro quando criança que corria para a rua comigo, sem coleira, e sentava na calçada, me assistindo jogar futebol no meio do asfalto com meus amigos. Quando algum deles tentava roubar a bola de mim, meu cachorro disparava como um Kannemann enlouquecido, rosnava e tentava morder o meu amigo até ele desistir do desarme. O susto dava certo. Era um modo de estarmos juntos.
Quer dizer, mais um modo de estarmos juntos. Esse mesmo cachorro também me fazia companhia em minha caminhada até a parada de ônibus. Esperava comigo até eu subir os degraus e passar a roleta, e só então ficava de pé. Me olhando uma última vez, virava as costas e ia embora para a nossa casa assim que eu achava meu lugar na janela.
Hoje eu entendo que com esses gestos ele mostrava sua disposição em entender o meu mundo, imaginando como podia comunicar sua amizade para mim. (“Tive um cachorro”: tive um amigo.)
4.
O cachorro que viveu comigo e com uma ex-namorada, mesmo filhote e com toda a energia do mundo para brincar — ou para entrar no box do banheiro até quando eu tomava banho —, contida naquele corpinho pequeno e orelhudo, de alguma forma entendia que eu estava escrevendo a monografia da minha graduação. Ele chegava perto e, quando eu deixava que subisse no meu colo, diante do computador, apenas deitava a cabeça nas minhas pernas e não exigia mais nada.
Mas não dormia — aí já seria demais. De olhos bem abertos e atentos me lembrava que estava ali, esperando que eu fizesse o que precisava fazer, e eu podia sentir que sua presença era melhor que o efeito de um Rivotril para lidar com aquilo.
5.
Híbrido de investigação filosófica-linguística-científica e ficção, Autobiografia de um polvo, de Vinciane Despret, apresenta três histórias incomuns e fascinantes, conectadas pelo fio invisível e vibratório que liga todas as criaturas do planeta: a linguagem como modo de descentralizar o humano do palco antropocêntrico.
A partir da therolinguística, ciência ficcional criada pela escritora Ursula K. Le Guin, Despret apresenta possibilidades de pensarmos a cosmologia das espécies como um esforço coletivo para vislumbramos um futuro para chamar de nosso.
Vou me ater à última das três histórias, a que dá título ao volume, um fechamento em grande estilo para aquilo que a autora propõe com o livro.
Conhecidos pela arte da furtividade, mestres em não deixar rastros, os polvos escrevem fragmentos de texto encontrados por pescadores em cerâmicas. A Associação de Therolinguística envia uma estagiária para a comunidade com o objetivo de tentar traduzir o que os polvos estão tentando dizer. Em comunidades criadas em torno de espécies seriamente ameaçadas de extinção, algumas crianças recebem, ao nascer, um animal simbionte com quem passam a viver em uma espécie de coabitação — e amizade — inter-espécies. Essas crianças são chamadas de Ulisses, e os Ulisses entendem a tradução como “experimentação sobre os significados”.
Sarah, a estagiária, é apresentada a seu Ulisses, que tem 15 anos e explica a ela que os Ulisses têm seu próprio idioma. Este não é centrado no sujeito, não como nós estamos acostumados: “Todo sujeito encontra-se no devir, não dentro de seu próprio agir, mas em uma multiplicidade de ações que o transbordam.” A certa altura, Sarah informa em seus relatórios que os polvos desapareceram do mar e ninguém sabe se e quando voltariam.
A tradução dos fragmentos deixados por eles vai revelando que os textos são autobiográficos, como se os polvos contassem sua história para eles mesmos. Acredita-se que, quando um polvo morre, ele retorna no corpo de outro, conservando a memória de vidas anteriores. É o relato dessas vidas que o polvo escreve, ao mesmo tempo que se dirige à forma de si mesmo que retornará no futuro: “Ao endereçar essa mensagem, como uma garrafa ao mar, ao ser que talvez se torne (polvo amnésico, marisco, peixe, humano sem lembranças), e ao esperar que esse ser futuro a encontre, esse polvo autobiógrafo estaria se dando uma chance, mesmo ínfima, de perseverar em seu ser e de se vincular com o que já fora.”
A estagiária decide não voltar e passa a viver com a comunidade e seus Ulisses, aprendendo com eles e ajudando na criação de uma biblioteca de literatura e poesia dos polvos.
O livro de Despret é engenhoso e sugere, todo o tempo, o quanto há por se descobrir sobre as vidas mais-que-humanas.
6.
O exercício da alteridade. É a coisa mais bonita e mais dolorida de se aprender. Exige que se reconheça limites e a própria condição fundadora deles: mesmo se você tentar, tentar e talvez conseguir ultrapassá-los, você nunca vai de fato tê-los ultrapassado, e suas tentativas serão apenas agressões. É o erro que nós, seres humanos, mais praticamos, talvez por nos recusarmos a aceitar uma condição inerente aos limites: preservá-los não significa amar menos, significa ter a humildade para encontrar nas distâncias o amor possível. Para cada um, para cada ser, para cada medida.
Se afastar é amar, fechar a porta depois de uma discussão é amar, evitar certos lugares para não ter que ver alguém é amar. Pedir, no fim da vida, “me deixem em paz”, como Pepe Mujica fez, é amar.
Postular que não há simetria no amor é amar.
7.
Os últimos dias ainda como uma intuição. Eu sento perto dele, ele faz um esforço que está além dos seus limites, dá para ver, para ficar de pé na minha frente. Chega mais perto e encaixa o focinho na cavidade atrás do meu joelho, como se ali estivesse escondido, protegido do que estava por vir.
Era o começo ou o final? As duas coisas se misturam, e agora estou chorando, passando os dedos em volta da orelha dele, como ele gostava, e ele segue ali, com uma força improvável, escondido, sentindo o que eu sentia: não daria para se esconder do que estava por vir.
8.
Nos seus últimos instantes, quando nossos pares de olhos de espécies companheiras mas diferentes se encaram, nós entendemos tudo. Eu e o Mujica, eu e o meu cachorro.
Obrigado pelo aprendizado da alteridade. E obrigado sobretudo pelo amor com que pudemos nos amar. Querer ser acordado por ti, latindo sem motivo no meio da noite, é, sim, amar. Eu estava ali. Tu estavas ali.
Estamos enredados uns nos outros e a vida só é possível porque é assim.
Um minutinho de atenção
1/ Fiz uma lista de 15 filmes que expressam, de alguma forma, a atmosfera do meu novo romance, Do teu fantasma vejo só o coração, que sai em agosto e deve entrar em pré-venda semana que vem. Quem quiser conferir, espia lá na rede ao lado, aqui.
2/ Meu primeiro livro, Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai, finalista do prêmio SP de Literatura, estava esgotado e agora acaba de ganhar nova reimpressão. Está disponível no site da editora Taverna, aqui.
3/ Esta newsletter também é o meu trabalho. Considere apoiá-lo pagando a assinatura mensal ou anual da Sensação futuro. Acho que não vou prometer textos exclusivos a assinantes porque gosto de pensar na internet como um espaço de inclusão, mas estou ponderando a possibilidade de oferecer algumas vantagens, sim, como meu trabalho de leitura crítica. Volto com mais informações — em algum momento.
que belezura, thiago ♥️
que sorte poder viver um amor tão eterno e puro como o amor entre espécies, né? 🥺❤️ me lembrou esse texto belíssimo: https://open.substack.com/pub/gabrielaventura/p/04-os-bichos-e-suas-coisas?r=1oxktm&utm_medium=ios acho que ele pode ser um abraço pra ti!