Millennials e a sensação de estar perdido num mundo nem tão belo
Sally Rooney, Michel Houellebecq, emergência climática, o que fazer da vida para ganhar dinheiro
1.
Mando uma mensagem para minha amiga, minha amiga escritora — e suspeito que essa informação não terá sido em vão quando eu terminar o último parágrafo.
Como tu tá de trampo?, pergunto para ela. Também digo que tenho a impressão de não saber procurar emprego, mas não era bem isso que queria dizer. Queria mesmo dizer é que a minha impressão é a de não saber procurar um emprego que eu possa fazer, eu que também sou escritor. Ela me diz que sente algo parecido.
2.
Não estou certo sobre publicar este texto. Não estou certo sobre minha vida profissional, e é por esse motivo que fiz a pergunta que fiz para minha amiga escritora e comecei este texto que não estou certo em publicar.
Não há muitos aspectos da minha vida sobre os quais eu possa afirmar que estou certo. Dizem que é assim que os millennials se sentem. Dizem que eu sou um millennial. Meio que não sei, mas então tá.
3.
O que é vida profissional? Quero dizer, o que ela é para mim: estou me perguntando isso agora, neste instante, para ver o que acontece. Vida e profissional são palavras que não ficam bem assim, lado a lado. Boa parte das pessoas com quem converso diz que gostaria de ganhar a vida fazendo outra coisa.
Sempre outra coisa.
Mas para fazer essa outra coisa precisam fazer esta aqui, esta que fazem agora mas que não gostariam de estar fazendo.
É esse o cálculo, é sempre esse o cálculo.
4.
Estou pensando nisso de ser um millennial, e é tão fácil ver como cada geração vai superando sua antecessora, é tão simples explicar tudo assim. Apontar os traços comuns de quem nasceu de tal a tal época, comparar o que quase nunca pode ser comparado. Um gesto autocompassivo, como se cruzássemos os braços, conformados: É isso aí mesmo, fazer o quê.
Não diz muito.
A não ser que se pare para pensar em classe social — isso pode, na maior parte das vezes, nos dizer algo importante (e frequentemente incômodo).
Então a pergunta é: os millennials da minha classe social, o que se pode dizer sobre eles? Nossos pais não têm formação acadêmica. Eles não puderam estudar, estava fora de cogitação. Havia outras coisas para se cogitar, como comer, ajudar em casa e garantir o teto e, mais tarde, que os filhos tivessem comida e pudessem crescer sob o mesmo teto.
Nós somos os filhos, e se não contássemos com políticas públicas, aliadas ao suor de nossos pais, também não cogitaríamos a tal formação acadêmica.
Eles desejavam outra coisa também?
5.
Não consigo direcionar meu desejo para alguma atividade que me dê estabilidade, digo em um áudio que envio para outro amigo. Ele já publicou um livro, um ótimo livro, mas já me disse que para ele meio que deu. Quer seguir carreira acadêmica, está no doutorado. Meu amigo é brilhante, então o futuro dele também vai ser. Mas ser brilhante, no final das contas, não garante quase nada, e o que desejo para o meu amigo é um futuro estável num planeta que está tornando muitos aspectos da nossa existência instáveis.
Dizem que essa preocupação é uma preocupação millennial — que mundo é esse em que vamos morrer porque as outras gerações não se preocuparam o suficiente e nos legaram um planeta superaquecido?
6.
Entrei no mestrado no semestre passado. Não sei se quero uma carreira acadêmica, meu palpite é que não. (Não sei, não sei — mas que saco.) No entanto, me dedicar por dois anos a um projeto novo, pesquisando e escrevendo, com a possibilidade de receber uma bolsa, era por si só mais instigante que um emprego formal, chato, exaustivo, que me sugaria até não sobrar mais a mínima vontade de escrever.
Meu segundo romance sai no ano que vem. A editora até me pagou um bom adiantamento. Só que o dinheiro já acabou, eu tive que comprar um computador novo, porque o velho, o computador em que escrevi o primeiro e o segundo livros, não podia sequer ser desligado sob risco de nunca mais voltar do limbo para onde vão as máquinas quando sobrecarregadas pelos anos e pelo pesinho de dois romances de um autor desempregado e meio perdido.
Lembro que há uma pesquisa esperando para ser respondida no meu e-mail. É sobre mercado editorial. “Você faz parte do eixo autores”, me disse o responsável pela pesquisa, um dia antes que eu começasse a escrever isto, ao pedir que eu a respondesse.
Então tá.
7.
As condições estavam ao meu lado (?) e eu pude estudar, me formar, ter uma profissão (também não estou bem certo sobre esta última, mas tudo bem). Que ótimo etc. No entanto, cada célula do meu corpo parece saber que eu não saí do lugar de onde vim, o lugar da minha família. Elas têm a convicção de que um ser humano é constituído de uma mixórdia complexa de heranças muito mais subjetivas do que um diploma e a permissividade do banco em me oferecer opções para que eu possa me endividar.
Qual é a distância entre o que se quer e o que se pode?
Às vezes, para ser honesto mais vezes do que eu gostaria, sinto que o meu lugar é um não-lugar: eu posso querer, ou, melhor, me fizeram acreditar que eu posso querer; mas não tenho todos os meios para realizar. Nem isso nem aquilo.
Então tá.
8.
Interrompo este texto numa primeira versão que me deixa um pouco satisfeito, talvez eu chegue em algum lugar e o publique. Mas ele ainda não diz o que eu gostaria que dissesse, embora o que eu gostaria que ele dissesse já esteja de alguma forma aqui.
Vou tomar café com uma amiga. Advogada.
“Quero mudar de área”, ela diz em menos de cinco minutos de conversa.
Pergunto como assim. [Estamos falando sobre a mesma coisa, ainda que ela não saiba.]
“Quero trabalhar de casa”, diz. “Não me vejo mais em um emprego presencial”. Um curso de marketing, e pronto, resume.
Então eu conto um pouco do que venho pensando sobre o assunto. Não consigo terminar nenhum argumento. As ideias que tento articular verbalmente não estão fazendo jus às ideias-sentimentos: se penso na minha mãe, me sinto ridículo ao reclamar das minhas condições; se penso nos meus amigos, me sinto… longe. O não-lugar.
“A questão é: o que nós vamos fazer com o dinheiro? Digo, se matar de trabalhar como nossos pais fizeram: pra quê? Pra eles o trabalho era apenas um meio de ganhar dinheiro e sustentar a família, comprar uma casa. Ter uma família e dar condições razoáveis pra ela: isso era o que dava sentido pra vida deles. A gente não quer essas coisas. Não mais.”
O trabalho é nossa melhor chance de desejar?
9.
O que eu sei fazer? Escrever? [Só isso?, alguém vai perguntar.]
10.
A Sally Rooney se descreve como uma romancista marxista.
Em Pessoas normais, o filho da empregada doméstica tem um rolinho com a filha da patroa da mãe. Ele é bolsista na escola em que os dois estudam. Em Belo mundo, onde você está?, uma escritora de sucesso se relaciona com um trabalhador de um depósito, um operário. Em Intermezzo, o último romance de Rooney, Ivan, de vinte e pouquinhos anos, é jogador de xadrez. Ele faz longos discursos sobre as condições de trabalho no século XXI — de certa forma, ele não quer se reconhecer como parte de um sistema de exploração, porque, porra, ele seria o explorado. Naomi, 23 anos, mora numa ocupação irregular e vende fotos na internet. Ela tem uma relação difícil de nomear com Peter, irmão mais velho de Ivan, e nessa relação — que lembra a recusa de Ivan de fazer parte de uma instituição falida, digamos — há dinâmicas de poder que passam pelo fato de Naomi aceitar a ajuda financeira de Peter, inclusive indo morar com ele quando a polícia faz dela uma sem-teto.
Rooney está dizendo o que Michel Houellebecq já disse num tom um tanto mais cínico e fatalista (para não dizer cringe): a experiência do amor, ou do sexo, no capitalismo tardio é mediada e modulada pela abstração financeira. Nenhuma novidade. Mas se em Houellebecq as posições sociais estão dadas e estáticas e os personagens expressam pouco mais que ressentimento, em Rooney há certo erotismo no vislumbre da dissolução das classes. Os personagens dela estão conscientes de que as fronteiras sociais estão bem mais borradas do que costumamos pensar, e o interesse deles procura a todo instante o limite do outro como forma de estipular o próprio limite. Reconhecimento. As cenas de sexo carregam um fundinho incômodo que pergunta até que ponto o que está acontecendo ali está a serviço do prazer ou da submissão, ou da subjugação: as singularidades dos indíviduos parecem de alguma forma inconciliáveis. É mais uma sensação. Quem já experimentou ela fora dos livros talvez a reconheça.
11.
Em Houellebecq, os personagens soam como ventrículos: estão ali para provar algum ponto. O protagonista de Plataforma conversa sobre turismo sexual com a namorada. Os preços para o sexo são basicamente iguais, em qualquer país, eles concordam: o que os ocidentais estão dispostos a pagar. É isso o que chamam de economia de mercado?, um deles pergunta.
Leio esse trecho e sei o que o autor está tentando fazer — Flaubert diria que o autor é como Deus: está em toda parte, ainda que não possa ser visto. Houellebecq é um Deus que gosta de aparecer. O leitor vai só cruzar os braços, Houellebecq.
12.
Dizem que a Sally Rooney é a romancista que traduz a geração millennial.
Carregamos a sensação incômoda de que o planeta começa a responder de forma brutal a nosso modo de habitá-lo, baseado na extração de recursos e crescimento infinito, certo? Parece não haver muita dúvida de que o ethos desse mesmo modo nos explora e nos vê como meras pecinhas da engrenagem que alimenta a si mesma. Esse é o círculo do qual não conseguimos escapar, não é? Em menor ou maior grau, a consciência do colapso climático tem acentuado a repulsa a uma vida de trabalho que ao fim e ao cabo degrada e esvazia. Marx e a alienação.
Uma geração após a outra vamos dormir com esse gostinho amargo na boca. Como nossos pais, acordamos, escovamos os dentes e vamos para o trabalho. Alguma novidade? Talvez lembremos de engolir o antidepressivo antes de sair. E é possível que ao chegar em casa nos sintamos confusos, nos perguntando o que estamos fazendo com o nosso tempo e com a vida que nos resta. Neste mundo que nos resta.
13.
O tempo é a tessitura da vida, escreveu Antonio Candido.
Em vez de cometer suicídio, as pessoas vão para o trabalho, escreveu Thomas Bernhard.
14.
Paro outra vez, não sei como continuar. Agora sinto que perdi ainda mais o que estava tentando dizer e, ao mesmo tempo, sei que minha tentativa de me aproximar do que quero dizer é o que expressa com maior verdade o que quero dizer: talvez escrever seja isso.
Assisto à minissérie sobre o Senna feita pela Netflix – ia chamar de novelão, mas já assisti a novelas muito, muito boas; a série é ruim. De modo que assisto outra vez o documentário de Asif Capadia, de 2010. O Senna tinha grana, muita grana, todo mundo sabe, e ele próprio aparece no final do último episódio da minissérie reconhecendo isso. Mas como é admirável ver um ser humano se entregar totalmente àquilo que lhe faz bem, àquilo que sabe fazer bem. Quase com devoção. Só que poder fazer isso também é, meio que desnecessário dizer, um privilégio. Lembro de um poema do Bolaño:
15.
É meu aniversário. Quem leu até aqui já tem uma boa ideia da minha idade. Quais eram minhas expectativas para essa fase da vida? Nunca alimentei muitas, mas posso dizer que a principal, a que realmente importa para mim, era pelo menos ter publicado um livro e talvez encaminhado o segundo por uma editora grande. É bem onde estou. Um lugar, será?
Mas e o resto? Quero basicamente o mesmo que todo mundo, mas estou longe de quase tudo.
Minha carreira. Penso nessas palavras. Que abstração. Que distância entre elas e a minha vida.
16.
Termino o texto no mesmo dia em que envio a documentação para concorrer à uma bolsa de mestrado. A bolsa representaria uma relativa estabilidade financeira por pelo menos um ano e meio. Mal lembro como é isso. Passo o dia atualizando meu irrisório Lattes: a maioria das coisas que eu fiz e com as quais me importo parecem deslocadas ali. Não são relevantes para a trajetória acadêmica.
Faço contas, marco números numa planilha, olho para a minha pontuação: provavelmente não vai dar e vou ter de pensar em outra coisa.
Sempre outra coisa.
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